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Leitura Comentada de texto descritivo

Leitura das Sombras

Em 1984, duas pequenas placas de argila de formato vagamente retangular foram encontradas em Tell Brak, Síria, datando do quarto milênio antes de Cristo. Eu as vi, um ano antes da guerra do Golfo, numa vitrine discreta do Museu Arqueológico de Bagdá. São objetos simples, ambos com algumas marcas leves: um pequeno entalhe em cima e uma espécie de animal puxado por uma vara no centro. Um dos animais pode ser uma cabra, e nesse caso o outro é provavelmente uma ovelha. O entalhe, dizem os arqueólogos, representa o número dez. Toda a nossa história começa com essas duas modestas placas. Eles estão - se a guerra os poupou - entre os exemplos mais antigos de escrita que conhecemos.
Há algo intensamente comovente nessas placas. Quando olhamos essas peças de argila levadas por um rio que não existe mais, observando as incisões delicadas que retratam animais transformados em pó há milhares e milhares de anos, talvez uma voz seja evocada, um pensamento, uma mensagem que nos diz: "Aqui estiveram dez cabras", "Aqui estiveram dez ovelhas", palavras pronunciadas por um fazendeiro cuidadoso no tempo em que os desertos eram verdes. Pelo simples fato de olhar essas placas, prolongamos a memória dos primórdios do nosso tempo, preservamos um pensamento muito tempo depois que o pensador parou de pensar e nos tornamos participantes de um ato de criação que permanece aberto enquanto as imagens entalhadas forem vistas, decifradas, lidas.
Tal como meu nebuloso ancestral sumério lendo as duas pequenas placas naquela tarde inconcebivelmente remota, eu também estou lendo, aqui na minha sala, através de séculos e mares. Sentado à minha escrivaninha, cotovelos sobre a página, queixo nas mãos, abstraído por um momento da mudança de luz lá fora e dos sons que se elevam da rua, estou vendo, ouvindo, seguindo (mas essas palavras não fazem justiça ao que está acontecendo dentro de mim) uma história, uma descrição, um argumento. Nada se move, exceto meus olhos e a mão que vira ocasionalmente a página, e contudo algo não exatamente definido pela palavra texto desdobra-se, progri~ cresce e deita raízes enquanto leio.

(Alberto Manguel - Uma História da Leitura - São Paulo, Companhia das Letras, 1997)

Comentários

a) 1° parágrafo: predomínio de objetividade

Repare que no primeiro parágrafo do texto, embora apareça a figura do sujeito (locutor ou emissor) da descrição - Eu as vi, um ano antes da guerra do Golfo, numa vitrine discreta do Museu Arqueológico de Bagdá - o objeto é descrito com objetividade, quer dizer, enfatizando mais as características do que foi visto (inclusive com indicações precisas de tempo e lugar) do que o ato de ver ... duas pequenas placas de argila de formato vagamente retangular foram encontradas em Tell Brak, Síria, datando do quarto milênio antes de Cristo (...) São objetos simples, ambos com algumas marcas leves: um pequeno entalhe em cima e uma espécie de animal puxado por uma vara no centro. Um dos animais pode ser uma cabra, e nesse caso o outro é provavelmente uma ovelha. O entalhe, dizem as arqueólogos, representa o número dez...

b) 2º parágrafo: predomínio de subjetividade

Do segundo parágrafo em diante, a mesma descrição adquirindo fortes marcas de subjetividade: Há algo intensamente comovente nessas placas. Quando olhamos essas peças de argila levadas por um rio que não existe mais, observando as incisões delicadas que retratam animais transformados em pó há milhares e milhares de anos, talvez uma voz seja evocada... palavras pronunciadas por um, fazendeiro cuidadoso no tempo em que os desertos eram verdes...

Tais marcas indicam a presença da emoção do sujeito enquanto descreve. Repare que ele faz uma evocação afetiva, por meio da percepção sensorial (os sentidos da visão e da audição, o segundo com existência imaginária), das mesmas placas descritas no primeiro parágrafo. Isso é importante para estudar a redação do Enem.

c) Objetividade e subjetividade: descrição e funcionalidade

As placas, que no primeiro parágrafo foram caracterizadas como os exemplos mais antigos de escrita que conhecemos, passam a partir do segundo a representar mais do que isso: elas se transformam em imagem do prolongamento e da preservação da memória dos primórdios do nosso tempo, o que permite ao leitor sentir-se parte do processo de decifrá-las.

Assim, enquanto o parágrafo de descrição objetiva nos faz perceber impessoalmente o objeto descrito, o de descrição subjetiva pessoaliza o contato que temos com ele, trazendo para o presente de nossa leitura o passado longínquo do surgimento do ato de ler.

Este procedimento no qual objetividade e subjetividade se mesclam, aumentando o poder intelectivo e ao mesmo tempo sugestivo do texto, é reforçado, no terceiro parágrafo, pela imagem do próprio sujeito lendo.

Neste parágrafo ele se transforma ao mesmo tempo em sujeito e objeto do texto e, de maneira concreta, realiza a descrição do seu ato de ler (com abundância de detalhes descritivos).

Desta forma, quer dizer, através de um parágrafo predominantemente objetivo ao qual se seguem outros dois, predominantemente subjetivos, o autor realiza o objetivo não apenas de transmitir intelectualmente, mas de mostrar sensorialmente ao leitor a permanência da leitura ao longo da história humana. Graças a seu ponto de vista de proximidade em relação ao objeto, fica registrada, com intensa expressividade, a relevância da leitura para a humanidade, através dos tempos e dos espaços.



Exemplo:

Tal como meu nebuloso ancestral sumério lendo as duas pequenas placas naquela tarde inconcebivelmente remota, eu também estou lendo, aqui na minha sala, através de séculos e mares. Sentado à minha escrivaninha, cotovelos sobre a página, queixo nas mãos abstraído por um momento da mudança de luz lá fora e dos sons que se elevam da rua, estou vendo, ouvindo, seguindo (...) uma história, uma descrição, um argumento...

Conclusões importantes

A leitura detalhada e comentada desta descrição permite-nos perceber que a presença da objetividade e da subjetividade em nossos textos descritivos pode ser mesclada, predominando o ponto de vista exigido por nossos objetivos e também pelos contextos de produção textual. Atentos a tais critérios, precisamos saber conciliar informação objetiva e impessoal com marcas de pessoalidade, de expressividade. Precisamos, enfim, trabalhar o rigor, a exatidão e a fidelidade ao real, isto é, a necessidade de esclarecer, convencendo, em sintonia com a de impressionar, agradando. Fica a minha dica para que você estude e comprove que o Segredos do Enem funciona para vestibular também.